O diabo era figura conhecida – e temida – na época medieval. Especialmente depois de Dante Alighieri, que viveu de 1265 a 1321, e escreveu uma obra intitulada: "A Divina Comédia", dividida em 3 partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Com esta obra, Dante abalou o pensamento teológico da época. O Inferno de Dante, estava baseado nos ensinos pagãos de Platão e Virgílio, e era de imagens tão assustadoras que até hoje, quando queremos dizer que algo é muito feio, medonho, usamos o adjetivo “dantesco”. O diabo em especial era um ser horripilante, animalesco, monstruoso como não poderia imaginar o pior dos pesadelos humanos. E essa figura mitológica acabou sendo incorporada no meio religioso, embora a Bíblia nos fale de um Lúcifer inteligente e belo (Ezequiel 28:17).
Como a cultura medieval era muito influenciada pela religião, e a música em especial refletia diretamente o pensamento teológico de então, o diabo deu seu jeito de entrar na música medieval também. Mas isso não aconteceu de nenhuma forma mística, apenas figurativa, como passaremos a explicar.
Como a cultura medieval era muito influenciada pela religião, e a música em especial refletia diretamente o pensamento teológico de então, o diabo deu seu jeito de entrar na música medieval também. Mas isso não aconteceu de nenhuma forma mística, apenas figurativa, como passaremos a explicar.
Quando a música saiu da monódia para a polifonia vocal, o objetivo dos músicos centrou-se em elaborar com precisão matemática as regras para coordenar várias vozes diferentes, sem ferir as exigências do ouvido por dissonâncias mais ásperas. Percebeu-se que cada voz guardava uma “distância” de uma para outra, ao contrário do uníssono onde todas as vozes soavam “no mesmo lugar”[1]. A essa distância que separa duas vozes ou notas, chamamos intervalo, o qual pode ser medido em tons e semitons [2].
Existem vários tipos de intervalo, por exemplo, intervalo de segunda maior, que separa duas notas vizinhas por um tom (como no caso das notas Dó-Ré); intervalo de terça menor, que separa duas notas por um tom e meio (como no caso das notas Ré-Fá), e também o intervalo de que vamos tratar agora, o de quarta aumentada, também chamado trítono, pois separa duas notas por três tons. Esse intervalo foi banido da música religiosa na Idade Média, pois o chamavam de diabolus in musica - “o diabo na música”.
Existem vários tipos de intervalo, por exemplo, intervalo de segunda maior, que separa duas notas vizinhas por um tom (como no caso das notas Dó-Ré); intervalo de terça menor, que separa duas notas por um tom e meio (como no caso das notas Ré-Fá), e também o intervalo de que vamos tratar agora, o de quarta aumentada, também chamado trítono, pois separa duas notas por três tons. Esse intervalo foi banido da música religiosa na Idade Média, pois o chamavam de diabolus in musica - “o diabo na música”.
E porque foram cismar de achar o diabo logo no trítono, contrariando toda aquela atração mística pelo número três? Por um motivo simples: o trítono era dissonante demais para eles! E não se concebia fazer música com dissonâncias Aquele som “desagradável” quebrando a consonância divina de sua música, só podia ser obra do diabo! Analisemos melhor a que ponto eles chegaram para se livrar do tal diabo na música.
A nota Si
Devido ao sistema adotado pelos músicos medievais, de cantar em certos modos (o que hoje seriam as nossas escalas), o trítono que ocorria com mais freqüência era o intervalo que separava a nota Fá da nota Si. Essas duas notas tocadas (ou cantadas) juntas, não agradavam, pelos motivos que já citamos. Nada contra a nota Si, a qual era representada pela letra B na notação alfabética, e que soava tão divina se combinada com o Mi, por exemplo. Mas aquele trítono... que diabo era aquilo? Para evitar que esse encontro com o tinhoso acontecesse, os músicos medievais permitiram à nota Si – e somente à nota Si – ser abaixada um semitom. Dessa forma, o Si “normal” ou “natural”, foi chamado de B duro, e representado por um b de forma quadrada. E o Si que fora abaixado um semitom, foi chamado de B mole, e representado por um b de forma redonda. Toda vez que o Fá tivesse de encontrar-se com o Si, representado pelo b, abaixava-se um semitom para encontrar o b mole, e não ocorrer um diabólico intervalo de trítono com o b duro. Tudo em nome da consonância. Interessante, é que essa fuga do diabo originou o que na notação moderna nós chamamos de “bequadro” e “bemol”. Hoje, o bemol é utilizado para abaixar qualquer nota em um semitom. Portanto dizer “Si bemol” é um tanto redundante, considerando que o “be” representa o próprio Si – é como dizer “Si Si mole”. A noção de b molle e b durum permaneceu por longo tempo, tanto que a letra B, por causa dessa mobilidade, só recebeu o nome de Si muito tempo depois de todas as outras – dó, ré, mi, fá, sol e lá – terem sido batizadas[3].
Conceitos bem pessoais de consonância e dissonância
Mas falamos muito de consonância e dissonância sem parar para explicar melhor o que seja isso. O si “bemolizado”, ou mole, em conjunto com o fá, soa bem aos ouvidos, é consonante, as duas notas se encaixam, como preto combina com branco, como calor combina com sorvete, como televisão combina com insônia, como inglês combina com paletó. Já o trítono, é dissonante, e isoladamente, causa uma agonia, uma comichão, a sensação de que alguma coisa está “errada” ou “incompleta” na música. No entanto, a dissonância é um recurso que, quando bem usado, torna a música muito mais bela e interessante que uma série de consonâncias bobas (sabe aquelas músicas que você adivinha, bocejando, como vão terminar?).
A dissonância vai ser muito usada posteriormente, por músicos especialistas em “complicar” uma melodia, levá-la por caminhos inimagináveis, para ao final “resolvê-la”, isto é, chegar até a consonância. Essa “resolução” da dissonância é como respirar depois de passar dois minutos prendendo o fôlego debaixo d´água. Como descalçar um sapato três números menor que o seu pé. E dependendo da arte do compositor, pode ser como chegar num aeroporto, avistar de longe a pessoa amada que não se vê há muito tempo, e ter de percorrer os dez metros de corredor, que separam o compartimento de malas, do saguão, para enfim poder abraçá-la.
Voltemos, no entanto, à Idade Média. Precisamos lembrar que ainda não havia noção de harmonia, nem do movimento que o uso de consonâncias e dissonâncias pode proporcionar à música. Concebia-se apenas os efeitos absolutos e isolados de agradável e desagradável à audição. Se era desagradável, não servia para a adoração a Deus. Se não servia para a adoração, era do diabo. Se era do diabo, era preciso ser evitado.
Resistir
Da mesma forma que os músicos medievais tinham seus parâmetros para identificar o diabo na música, Jesus também nos deixou alguns sinais de como identificá-lo ao nosso redor, e nos livrarmos dele.
Resistir
Da mesma forma que os músicos medievais tinham seus parâmetros para identificar o diabo na música, Jesus também nos deixou alguns sinais de como identificá-lo ao nosso redor, e nos livrarmos dele.
A primeira coisa a fazer é ter consciência de sua existência, já que, hoje em dia, ao contrário da época medieval, o Diabo tornou-se quase uma lenda, uma figurinha mitológica que não assusta mais ninguém. A Bíblia no entanto, nos adverte: “Sedes sóbrios, vigiem. O vosso adversário, o Diabo, anda em derredor, rugindo como leão, e procurando a quem possa tragar” (II Pedro 5:8). E por vezes nós simplesmente esquecemos dele, porque estamos muito mais presos ao mundo material que ao mundo espiritual. O Diabo não ganha muito em mostrar-se como um ser repulsivo e maligno, por isso ele busca formas mais sutis de nos atrair, maneiras mais capciosas de envolver. Sua inteligência e astúcia são tão elaboradas, que a maioria das vezes consegue usar os seres humanos e afastá-los de Deus, sem que eles se dêem conta disso.
Mas se buscarmos amparo nas Sagradas Escrituras, saberemos discernir se os nossos atos estão condescendendo com esse ser terrível.
Mas se buscarmos amparo nas Sagradas Escrituras, saberemos discernir se os nossos atos estão condescendendo com esse ser terrível.
1) O Diabo não é mesmo tão feio quanto dizem. Ele prefere aparecer sob um disfarce que o torne aparentemente inofensivo a quem o vê. A verdade é que nossos sentidos apenas, sem a influência do Espírito Santo, são um péssimo critério para identificar o que é ou não obra do Mal. “E não é de admirar, porquanto o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz.” (II Coríntios 11: 14)
2) Nas obras do Diabo prevalece sempre a vontade humana, em detrimento da vontade de Deus. Mesmo que haja uma aparência cristã, aquilo que é feito para agradar apenas a homens, dificilmente agradará ao Senhor. Sempre haverá quem ache que seguir os princípios divinos seja incômodo, que implique num sofrimento desnecessário, e digam “ora, escolha aquilo que lhe é humanamente mais agradável”. Quando Pedro disse isso a Jesus, “Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Afaste-se de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não estás pensando nas coisas que são de Deus, mas sim nas que são dos homens.” (Mateus 16: 23) “E que se desprendam dos laços do Diabo (por quem haviam sido presos), para cumprirem a vontade de Deus.” (II Timóteo 2: 26)
3) Satanás é homicida e mentiroso, mas não espere mentiras facilmente perceptíveis: sua especialidade é misturar verdade e erro, para obter mentiras muito inteligentes. “Vós tendes por pai o Diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele é homicida desde o princípio, e nunca se firmou na verdade, porque nele não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira.” (João 8: 44)
4) Ele prefere nos atacar quando estamos fracos e vulneráveis. Por isso precisamos ter um cuidado especial em manter nossos sentidos sóbrios. Se eles estiverem embotados, serão uma porta de entrada para o Maligno. E espiritualmente, não podemos deixar de nos alimentar um dia sequer com a Palavra da Verdade. “Jesus, pois, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão; e era levado pelo Espírito no deserto (...). E naqueles dias não comeu coisa alguma; e terminados eles, teve fome. Disse-lhe então o Diabo: Se tu és Filho de Deus, manda a esta pedra que se torne em pão.” (Lucas 4:1-3)
5) Incita à traição, à soberba, à incontinência, à injustiça e ao desamor. “Enquanto ceavam, tendo já o Diabo posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, que o traísse” (João 13: 2); “(...) para que não se ensoberbeça e venha a cair na condenação do Diabo.” (I Timóteo 3:6); “(...) para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência.” (I Cor. 7: 5) ; “Nisto são manifestos os filhos de Deus, e os filhos do Diabo: quem não pratica a justiça não é de Deus, nem o que não ama a seu irmão.” (I João 3:10)
Por fim, quem não está com Deus, está com o Diabo. Não existe meio-termo, é tão impossível quanto em música não se concebe “desafinar só um pouquinho”, ou uma nota ser “mais ou menos dissonante”. E guardar sob nosso controle uma parte da nossa vida, ao invés de entregá-la nas mãos de Deus, é dar lugar ao Diabo.(Efésios 4:27)Temos de estar bem juntos a Cristo, todo o tempo, e entregar-lhe a nossa vida por inteiro. Só assim nos desprenderemos dos enganos a que está sujeita a carne.
Contra todas essas coisas uma única fórmula, simples e direta, é bastante eficaz: “Sujeitai-vos, pois, a Deus; mas resisti ao Diabo, e ele fugirá de vós.” (Tiago 4: 7). Resistir é bem mais que conviver pacificamente com o erro, ou aceitá-lo em parte: é opor-se, recusar-se a ceder, fazer frente às investidas do adversário. “E o Deus da paz em breve esmagará a Satanás debaixo dos vossos pés. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco.” (Romanos 16:20).
Luciana Dantas Teixeira
Música ilustrativa: “Ut Re Mi Fá Sol La”, de Willian Byrd. O interessante dessa música é que, ao ouví-la, podemos discernir claramente as seis primeiras notas musicais sendo tocadas respectivamente “para cima” e “para baixo”, e educados que fomos pela Noviça Rebelde, ficamos um tanto “angustiados” por ele nunca chegar ao Si. No tempo de Byrd, a nota “Dó” ainda era “Ut” (imagina como era horrível solfejá-la!), e o Si, por ser tão “móvel” ainda não tinha sido nomeado.
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Quanto ao trítono, poderíamos dar vários exemplos de como ele veio a ser usado futuramente. Mas destacamos o compositor Sibelius, o qual mostrou, um tanto recentemente, que o intervalo de quarta aumentada pode servir de base para uma música. A maior prova disso está em sua Quarta Sinfonia, que você pode ouvir a Orquestra Sinfônica de Moscou tocando, se acessar a página do Classical Music Archives.
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[1] No uníssono as notas também podem soar em “lugares diferentes”, desde que guardem entre si um ou mais intervalos de oitava.
[2] Um semitom é a metade de um tom.
[3] Compreenda como era incômoda essa mobilidade do Si para os músicos medievais. Imagine o professor Guido D´Arezzo ensinando seus alunos a solfejar as notas musicais na escala ascedente e descendente, dizendo: Ut (=Dó), Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, B durum, Ut, B molle, Lá, Sol, Fá, Mi, Ré, Ut. Isso ficava muito comprido! Era mais prático pular o Si.
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