terça-feira, 5 de maio de 2009

O diabo na música

O diabo era figura conhecida – e temida – na época medieval. Especialmente depois de Dante Alighieri, que viveu de 1265 a 1321, e escreveu uma obra intitulada: "A Divina Comédia", dividida em 3 partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Com esta obra, Dante abalou o pensamento teológico da época. O Inferno de Dante, estava baseado nos ensinos pagãos de Platão e Virgílio, e era de imagens tão assustadoras que até hoje, quando queremos dizer que algo é muito feio, medonho, usamos o adjetivo “dantesco”. O diabo em especial era um ser horripilante, animalesco, monstruoso como não poderia imaginar o pior dos pesadelos humanos. E essa figura mitológica acabou sendo incorporada no meio religioso, embora a Bíblia nos fale de um Lúcifer inteligente e belo (Ezequiel 28:17).
Como a cultura medieval era muito influenciada pela religião, e a música em especial refletia diretamente o pensamento teológico de então, o diabo deu seu jeito de entrar na música medieval também. Mas isso não aconteceu de nenhuma forma mística, apenas figurativa, como passaremos a explicar.

Quando a música saiu da monódia para a polifonia vocal, o objetivo dos músicos centrou-se em elaborar com precisão matemática as regras para coordenar várias vozes diferentes, sem ferir as exigências do ouvido por dissonâncias mais ásperas. Percebeu-se que cada voz guardava uma “distância” de uma para outra, ao contrário do uníssono onde todas as vozes soavam “no mesmo lugar”[1]. A essa distância que separa duas vozes ou notas, chamamos intervalo, o qual pode ser medido em tons e semitons [2].

Existem vários tipos de intervalo, por exemplo, intervalo de segunda maior, que separa duas notas vizinhas por um tom (como no caso das notas Dó-Ré); intervalo de terça menor, que separa duas notas por um tom e meio (como no caso das notas Ré-Fá), e também o intervalo de que vamos tratar agora, o de quarta aumentada, também chamado trítono, pois separa duas notas por três tons. Esse intervalo foi banido da música religiosa na Idade Média, pois o chamavam de diabolus in musica - “o diabo na música”.

E porque foram cismar de achar o diabo logo no trítono, contrariando toda aquela atração mística pelo número três? Por um motivo simples: o trítono era dissonante demais para eles! E não se concebia fazer música com dissonâncias Aquele som “desagradável” quebrando a consonância divina de sua música, só podia ser obra do diabo! Analisemos melhor a que ponto eles chegaram para se livrar do tal diabo na música.


A nota Si

Devido ao sistema adotado pelos músicos medievais, de cantar em certos modos (o que hoje seriam as nossas escalas), o trítono que ocorria com mais freqüência era o intervalo que separava a nota Fá da nota Si. Essas duas notas tocadas (ou cantadas) juntas, não agradavam, pelos motivos que já citamos. Nada contra a nota Si, a qual era representada pela letra B na notação alfabética, e que soava tão divina se combinada com o Mi, por exemplo. Mas aquele trítono... que diabo era aquilo? Para evitar que esse encontro com o tinhoso acontecesse, os músicos medievais permitiram à nota Si – e somente à nota Si – ser abaixada um semitom. Dessa forma, o Si “normal” ou “natural”, foi chamado de B duro, e representado por um b de forma quadrada. E o Si que fora abaixado um semitom, foi chamado de B mole, e representado por um b de forma redonda. Toda vez que o Fá tivesse de encontrar-se com o Si, representado pelo b, abaixava-se um semitom para encontrar o b mole, e não ocorrer um diabólico intervalo de trítono com o b duro. Tudo em nome da consonância. Interessante, é que essa fuga do diabo originou o que na notação moderna nós chamamos de “bequadro” e “bemol”. Hoje, o bemol é utilizado para abaixar qualquer nota em um semitom. Portanto dizer “Si bemol” é um tanto redundante, considerando que o “be” representa o próprio Si – é como dizer “Si Si mole”. A noção de b molle e b durum permaneceu por longo tempo, tanto que a letra B, por causa dessa mobilidade, só recebeu o nome de Si muito tempo depois de todas as outras – dó, ré, mi, fá, sol e lá – terem sido batizadas[3].


Conceitos bem pessoais de consonância e dissonância

Mas falamos muito de consonância e dissonância sem parar para explicar melhor o que seja isso. O si “bemolizado”, ou mole, em conjunto com o fá, soa bem aos ouvidos, é consonante, as duas notas se encaixam, como preto combina com branco, como calor combina com sorvete, como televisão combina com insônia, como inglês combina com paletó. Já o trítono, é dissonante, e isoladamente, causa uma agonia, uma comichão, a sensação de que alguma coisa está “errada” ou “incompleta” na música. No entanto, a dissonância é um recurso que, quando bem usado, torna a música muito mais bela e interessante que uma série de consonâncias bobas (sabe aquelas músicas que você adivinha, bocejando, como vão terminar?).

A dissonância vai ser muito usada posteriormente, por músicos especialistas em “complicar” uma melodia, levá-la por caminhos inimagináveis, para ao final “resolvê-la”, isto é, chegar até a consonância. Essa “resolução” da dissonância é como respirar depois de passar dois minutos prendendo o fôlego debaixo d´água. Como descalçar um sapato três números menor que o seu pé. E dependendo da arte do compositor, pode ser como chegar num aeroporto, avistar de longe a pessoa amada que não se vê há muito tempo, e ter de percorrer os dez metros de corredor, que separam o compartimento de malas, do saguão, para enfim poder abraçá-la.

Voltemos, no entanto, à Idade Média. Precisamos lembrar que ainda não havia noção de harmonia, nem do movimento que o uso de consonâncias e dissonâncias pode proporcionar à música. Concebia-se apenas os efeitos absolutos e isolados de agradável e desagradável à audição. Se era desagradável, não servia para a adoração a Deus. Se não servia para a adoração, era do diabo. Se era do diabo, era preciso ser evitado.


Resistir

Da mesma forma que os músicos medievais tinham seus parâmetros para identificar o diabo na música, Jesus também nos deixou alguns sinais de como identificá-lo ao nosso redor, e nos livrarmos dele.

A primeira coisa a fazer é ter consciência de sua existência, já que, hoje em dia, ao contrário da época medieval, o Diabo tornou-se quase uma lenda, uma figurinha mitológica que não assusta mais ninguém. A Bíblia no entanto, nos adverte: “Sedes sóbrios, vigiem. O vosso adversário, o Diabo, anda em derredor, rugindo como leão, e procurando a quem possa tragar” (II Pedro 5:8). E por vezes nós simplesmente esquecemos dele, porque estamos muito mais presos ao mundo material que ao mundo espiritual. O Diabo não ganha muito em mostrar-se como um ser repulsivo e maligno, por isso ele busca formas mais sutis de nos atrair, maneiras mais capciosas de envolver. Sua inteligência e astúcia são tão elaboradas, que a maioria das vezes consegue usar os seres humanos e afastá-los de Deus, sem que eles se dêem conta disso.

Mas se buscarmos amparo nas Sagradas Escrituras, saberemos discernir se os nossos atos estão condescendendo com esse ser terrível.

1) O Diabo não é mesmo tão feio quanto dizem. Ele prefere aparecer sob um disfarce que o torne aparentemente inofensivo a quem o vê. A verdade é que nossos sentidos apenas, sem a influência do Espírito Santo, são um péssimo critério para identificar o que é ou não obra do Mal. “E não é de admirar, porquanto o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz.” (II Coríntios 11: 14)

2) Nas obras do Diabo prevalece sempre a vontade humana, em detrimento da vontade de Deus. Mesmo que haja uma aparência cristã, aquilo que é feito para agradar apenas a homens, dificilmente agradará ao Senhor. Sempre haverá quem ache que seguir os princípios divinos seja incômodo, que implique num sofrimento desnecessário, e digam “ora, escolha aquilo que lhe é humanamente mais agradável”. Quando Pedro disse isso a Jesus, “Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Afaste-se de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não estás pensando nas coisas que são de Deus, mas sim nas que são dos homens.” (Mateus 16: 23) “E que se desprendam dos laços do Diabo (por quem haviam sido presos), para cumprirem a vontade de Deus.” (II Timóteo 2: 26)

3) Satanás é homicida e mentiroso, mas não espere mentiras facilmente perceptíveis: sua especialidade é misturar verdade e erro, para obter mentiras muito inteligentes. “Vós tendes por pai o Diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai; ele é homicida desde o princípio, e nunca se firmou na verdade, porque nele não há verdade; quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio; porque é mentiroso, e pai da mentira.” (João 8: 44)

4) Ele prefere nos atacar quando estamos fracos e vulneráveis. Por isso precisamos ter um cuidado especial em manter nossos sentidos sóbrios. Se eles estiverem embotados, serão uma porta de entrada para o Maligno. E espiritualmente, não podemos deixar de nos alimentar um dia sequer com a Palavra da Verdade. “Jesus, pois, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão; e era levado pelo Espírito no deserto (...). E naqueles dias não comeu coisa alguma; e terminados eles, teve fome. Disse-lhe então o Diabo: Se tu és Filho de Deus, manda a esta pedra que se torne em pão.” (Lucas 4:1-3)

5) Incita à traição, à soberba, à incontinência, à injustiça e ao desamor. “Enquanto ceavam, tendo já o Diabo posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, que o traísse” (João 13: 2); “(...) para que não se ensoberbeça e venha a cair na condenação do Diabo.” (I Timóteo 3:6); “(...) para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência.” (I Cor. 7: 5) ; “Nisto são manifestos os filhos de Deus, e os filhos do Diabo: quem não pratica a justiça não é de Deus, nem o que não ama a seu irmão.” (I João 3:10)

Por fim, quem não está com Deus, está com o Diabo. Não existe meio-termo, é tão impossível quanto em música não se concebe “desafinar só um pouquinho”, ou uma nota ser “mais ou menos dissonante”. E guardar sob nosso controle uma parte da nossa vida, ao invés de entregá-la nas mãos de Deus, é dar lugar ao Diabo.(Efésios 4:27)Temos de estar bem juntos a Cristo, todo o tempo, e entregar-lhe a nossa vida por inteiro. Só assim nos desprenderemos dos enganos a que está sujeita a carne.

Contra todas essas coisas uma única fórmula, simples e direta, é bastante eficaz: “Sujeitai-vos, pois, a Deus; mas resisti ao Diabo, e ele fugirá de vós.” (Tiago 4: 7). Resistir é bem mais que conviver pacificamente com o erro, ou aceitá-lo em parte: é opor-se, recusar-se a ceder, fazer frente às investidas do adversário. “E o Deus da paz em breve esmagará a Satanás debaixo dos vossos pés. A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco.” (Romanos 16:20).


Luciana Dantas Teixeira

Música ilustrativa: “Ut Re Mi Fá Sol La”, de Willian Byrd. O interessante dessa música é que, ao ouví-la, podemos discernir claramente as seis primeiras notas musicais sendo tocadas respectivamente “para cima” e “para baixo”, e educados que fomos pela Noviça Rebelde, ficamos um tanto “angustiados” por ele nunca chegar ao Si. No tempo de Byrd, a nota “Dó” ainda era “Ut” (imagina como era horrível solfejá-la!), e o Si, por ser tão “móvel” ainda não tinha sido nomeado.

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Quanto ao trítono, poderíamos dar vários exemplos de como ele veio a ser usado futuramente. Mas destacamos o compositor Sibelius, o qual mostrou, um tanto recentemente, que o intervalo de quarta aumentada pode servir de base para uma música. A maior prova disso está em sua Quarta Sinfonia, que você pode ouvir a Orquestra Sinfônica de Moscou tocando, se acessar a página do Classical Music Archives.

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[1] No uníssono as notas também podem soar em “lugares diferentes”, desde que guardem entre si um ou mais intervalos de oitava.

[2] Um semitom é a metade de um tom.

[3] Compreenda como era incômoda essa mobilidade do Si para os músicos medievais. Imagine o professor Guido D´Arezzo ensinando seus alunos a solfejar as notas musicais na escala ascedente e descendente, dizendo: Ut (=Dó), Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, B durum, Ut, B molle, Lá, Sol, Fá, Mi, Ré, Ut. Isso ficava muito comprido! Era mais prático pular o Si.

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